“Queremos lembrar que saúde mental é um direito, não um privilégio”
“Queremos lembrar que saúde mental é um direito, não um privilégio”
A cidade de Pelotas se prepara para receber, no dia 28 de março, a primeira edição do projeto CAPS na Rua. A iniciativa busca levar o cuidado em saúde mental para além dos muros institucionais, ocupando praças, ruas e espaços públicos com ações culturais, oficinas, orientações de saúde e práticas terapêuticas. O projeto, que acontecerá mensalmente até outubro, pretende aproximar os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) da vida cotidiana da população.
A ação também tem como objetivo reforçar o caráter comunitário dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), construindo pontes entre usuários, profissionais e moradores dos territórios. “Queremos mostrar que o CAPS é um espaço de cuidado, de produção de saúde, de acolhimento. Não um lugar isolado ou fechado, como muitas vezes é retratado”, explicou Clarissa de Souza Cardoso, apoiadora técnica da RAPS e entrevistada no programa Contraponto da RádioCom, na manhã desta quinta-feira, 13 de março.
Uma política de cuidado em liberdade
Durante a entrevista, Clarissa enfatizou que a construção do CAPS na Rua é fruto de um processo coletivo de resistência e reconstrução. Após anos de precarização e desmonte das políticas públicas de saúde mental, a atual gestão da RAPS tem buscado retomar os princípios da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial. “A saúde mental foi muito estigmatizada por uma lógica de isolamento e medicalização. Queremos reconstruir a rede com base no cuidado em liberdade e na valorização da vida em comunidade”, afirmou.
A proposta foi idealizada pela coordenadora da RAPS, professora Luciane Kantorski, referência nacional na área, e abraçada por diferentes secretarias municipais. A equipe responsável pela implementação reúne profissionais comprometidos com essa transformação. Para Clarissa, esse trabalho em rede e entre setores é fundamental. “O projeto só foi possível porque outras secretarias, como a de Cultura, abraçaram a ideia. E isso mostra que saúde mental se faz em todas as áreas da vida”, pontuou.
Arte, cultura e comunidade como ferramentas de cuidado
A proposta do CAPS na Rua aposta na arte e na cultura como instrumentos terapêuticos e de transformação social. Cada edição contará com exposições de trabalhos artísticos produzidos pelos usuários dos serviços, apresentações culturais como a do coral Los Locos (formado no CAPS Porto), além de oficinas criativas abertas ao público. “É uma forma de mostrar que há vida, criação e potência dentro dos CAPS”, ressaltou Clarissa.
Ela destacou que os serviços de saúde mental não são apenas locais de tratamento, mas também de produção de subjetividade, vínculo e pertencimento. “Temos usuários que desenvolvem habilidades incríveis em oficinas de música, artesanato, escrita. Queremos que esses trabalhos ocupem as ruas, que sejam vistos, valorizados e reconhecidos”, disse. A ideia é ampliar o entendimento de saúde para além do clínico, apostando em práticas que envolvam afeto, cultura e participação social.
Desmistificar e enfrentar o preconceito
Clarissa chamou atenção para o preconceito ainda muito presente em relação à saúde mental e aos serviços da RAPS. “Circulam memes e piadas sobre os CAPS como se fossem lugares perigosos ou ridículos. Isso mostra o quanto ainda precisamos desestigmatizar a saúde mental”, afirmou. Segundo ela, essas representações violentam usuários e profissionais e dificultam o acesso das pessoas aos serviços por medo ou vergonha.
Ao mesmo tempo, dados apontam para uma crise nacional de saúde mental. Reportagens recentes revelam que mais de 500 mil brasileiras e brasileiros estão afastadas do trabalho por questões psíquicas. Para Clarissa, é urgente construir uma cultura de cuidado e respeito. “Todos nós estamos sujeitos a sofrer, a precisar de ajuda. O cuidado em saúde mental é um direito e deve ser acessível, acolhedor e livre de julgamentos”, pontuou. Ela acredita que o CAPS na Rua pode ser uma ferramenta poderosa para reverter esse imaginário negativo.
Saúde mental dos trabalhadores também importa
Outro ponto de destaque na entrevista foi o olhar para os profissionais da saúde mental. Clarissa relatou que, ao assumir a gestão, encontrou muitos trabalhadores adoecidos, sobrecarregados e desmotivados. “Percebemos que cuidar da rede também significa cuidar de quem está nela. Por isso, priorizamos a escuta, o diálogo e a reorganização dos processos de trabalho”, afirmou. A equipe gestora tem visitado os serviços, promovido reuniões com as equipes e criado espaços de capacitação e apoio.
Um dos avanços foi a implementação de formações para novos funcionários, com apoio da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), abordando temas como primeiros socorros, cuidados em residências terapêuticas e a lógica do cuidado em liberdade. “Estamos construindo juntos uma nova forma de trabalhar, mais humanizada e colaborativa”, disse. Está em andamento também a organização de um seminário voltado à saúde mental dos trabalhadores, previsto ainda para o primeiro semestre de 2025.
CAPS 24h, reabertura de unidades e novos desafios
Clarissa compartilhou ainda os desafios e projetos futuros da RAPS em Pelotas. Entre eles, está a transformação de um CAPS II em CAPS III, com funcionamento 24 horas para atendimento de crises. “Hoje, ainda dependemos de internações no Hospital Espírita. Mas acreditamos que é possível cuidar em liberdade, com suporte adequado nos territórios”, explicou. A proposta foi submetida ao novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), do governo federal, e aguarda aprovação.
Além disso, a gestão trabalha para reabrir duas unidades importantes que foram desativadas na administração anterior: a Unidade de Acolhimento Adulto (UAA) e a Unidade de Acolhimento Infantojuvenil (UAI). Esses serviços são fundamentais para casos de desintoxicação e transição ao cuidado em liberdade. Também está em estudo uma parceria com a UFPel para viabilizar a criação de um CAPS universitário, aproveitando a estrutura e o potencial formativo da instituição.
CAPS na infância e adolescência: desafios crescentes
O CAPS-I (Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil) de Pelotas atende semanalmente entre 750 e 800 crianças e adolescentes — número que cresce mês a mês. Clarissa explicou que a maioria das crianças atendidas passou por situações de violência, negligência ou contextos familiares marcados por vulnerabilidade. “Temos uma sociedade adultocêntrica, que normaliza a violência contra crianças. Isso gera um impacto enorme na saúde mental delas”, alertou.
Embora o serviço acolha também casos do espectro autista, Clarissa reforçou que muitas dessas crianças precisariam de um atendimento mais individualizado, o que nem sempre é possível dentro da lógica coletiva do CAPS. Ainda assim, o serviço não nega acolhimento. “Nosso desafio é ampliar a capacidade, melhorar a estrutura e garantir que nenhuma criança fique sem cuidado”, afirmou. A transformação do CAPS-I em serviço 24h é uma das metas da gestão atual.
Calendário do CAPS na Rua
A primeira edição do CAPS na Rua será realizada no dia 28 de março, nas imediações do CAPS Porto. A programação contará com apresentações culturais, exposições de trabalhos artísticos, barraca da saúde e atividades voltadas ao bem-estar físico e emocional. O calendário segue com ações mensais até outubro, sempre articuladas com os territórios dos respectivos CAPS e com apoio de diferentes secretarias e da sociedade civil.
Clarissa explicou que a divulgação será feita pelas redes sociais dos serviços, pela Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Pelotas (AUSSMPE) e pelas mídias da Secretaria de Saúde. Também haverá participação da Barraca da Saúde da UFPel, com verificação de pressão arterial, orientação nutricional e práticas integrativas. “Queremos que o CAPS na Rua seja um espaço de encontro, de escuta e de celebração da vida”, afirmou.
Calendário previsto
28 de março – CAPS Porto
25 de abril – CAPS Castelo
14 de maio – CAPS Escola
27 de junho – CAPS Baronesa
25 de julho – CAPS Zona Norte
29 de agosto – CAPS Fragata
26 de setembro – CAPS AD
10 de outubro – CAPS-I
A proposta do CAPS na Rua representa mais do que uma programação de eventos: é um chamado à comunidade para repensar o cuidado em saúde mental, reconhecer o papel transformador dos serviços psicossociais e combater, coletivamente, os estigmas que ainda isolam e silenciam tantas pessoas. “Queremos que esse projeto ajude a reconstruir vínculos, humanizar a política pública e lembrar a todos que saúde mental é um direito, não um privilégio”, concluiu Clarissa.
Serviço
CAPS na Rua – Primeira edição
Data: 28 de março de 2025
Local: Imediações do CAPS Porto
Atividades: Exposições, apresentações culturais, oficinas, barraca da saúde, orientações nutricionais
Acesso: Gratuito e aberto à comunidade
*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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