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Psicanálise amefricana na teoria e na prática
Iniciativa de instituição de psicanálise é pioneira ao implementar vagas para ações afirmativas desde 2019 em seus cursos e demais ações, compreendendo a psicanálise não como um lugar fixo, mas como a construção teórico-prática de uma psicanálise amefricana.
Com a finalidade de implementar ações afirmativas em seus cursos de formação de psicanalistas e de construir cotidianamente o envolvimento desses profissionais, como também de professores, escritores e estudantes negres em toda sua rede de ações, uma iniciativa de subversão à lógica tradicional da psicanálise tem tomado proporções e produzido bons resultados em Porto Alegre/RS.
Tal iniciativa tem alterado o perfil predominantemente branco de psicanalistas em formação e de pacientes que buscam profissionais da saúde psíquica mais alinhados e identificados às suas cosmopercepções e experiências de vida. Trata-se da iniciativa da Après Coup Porto Alegre Psicanálise e Poesia que, há mais de 20 anos, realiza trabalho permanente visando à transmissão da psicanálise como possibilidade de subversão do discurso dominante, ou seja, uma psicanálise que considera em seu discurso as subjetividades diversas e plurais dos sujeitos e da sociedade. A associação sem fins lucrativos, nascida em Porto Alegre, é a primeira instituição a incorporar as ações afirmativas em seus cursos de psicanálise no Rio Grande do Sul e hoje conta com a maioria negra em seu quadro de alunas e de alunos em formação em psicanálise.
A iniciativa não apenas foi a primeira a implementar as ações afirmativas, como também tem proporcionado a formulação de uma Psicanálise Amefricana, que leva adiante a concepção teórica da ausência de identidade única também na psicanálise. A intelectual Lélia Gonzalez alcunhou de amefricanidade o que se constitui na recuperação da insurgência afrolatinoamericana, historicamente protagonizada por pessoas negras e indígenas contra as estruturais violências de gênero, raça, classe e nacionalidade. O conceito, que vai muito além do termo, passou a ganhar mais força e visibilidade nos últimos anos nos espaços acadêmicos e em debates políticos e sociais, porém, pouco ainda se vê na prática a incorporação dessa concepção teórica. Nesse sentido, a proposição de uma psicanálise amefricana, levada à frente pela Après Coup, assenta-se na escuta clínica, supervisão, análise e especialmente na pesquisa, leitura, estudo, discussão e produção escrita acerca de mitos africanos, literatura e poesia africana e amefricana.
A psicanalista, poeta e uma das coordenadoras da instituição, Eliane Marques, explica que essa concepção teórica está em formação, mas que trata de incluir na psicanálise a possibilidade de escuta de subjetividades que estiveram à margem da formação inicial do campo e que ainda hoje se sentem dele excomungadas. Ela destaca que a ideia assenta-se também na leitura de textos freudianos e lacanianos (embora não apenas) nos quais questões de gênero e de raça social, entre outras, não foram discutidas, embora desde lá trouxessem essa possiblidade. “Se vivemos outros mitos que não apenas os gregos, exige-se da psicanálise e das psicanalistas que escutem outros mitos além dos gregos”, explica. Eliane tem se debruçado nesta temática, tanto como psicanalista, quanto como pesquisadora e escritora. Em um dos seus textos intitulado: “Exu na psicanálise", a autora cita o exemplo do conjunto de mitos relativos a Exu: “Interpretados em conjunto, localizam esse orixá na base de uma série, demonstrando o que Lacan concluiu com o paradoxo de Russell, ou seja, que na base do regime da determinação simbólica insiste uma negatividade, algo da série que é sempre externo a ela e dela ao mesmo tempo”, aponta.
O caminho da psicanálise amefricana visa à produção de outras formas de viver dentro e fora do campo psicanalítico. Em texto construído por Eliane Marques e pela diretora e psicanalista didata da instituição, Marcela Villavella, ambas destacam que “é o momento de levantarmos do chão os mitos enterrados e de enterrarmos os monstros da razão, com trabalho e trabalho para ampliarmos conceitos ditos ocidentocêntricos. A psicanálise também como discurso é um método de investigação. Com ela trabalhamos sobre conceitos e não sobre dogmas. Portanto, a psicanálise amefricana é o maior desafio que temos como instituição. E nos dispomos seriamente a esse intento”, enfatizam.
“É o lugar onde me sinto à vontade para discutir todas as partes de mim.”
Irimara Peixoto é negra, psicóloga, cursa mestrado na Georgia State University e faz análise com uma psicanalista negra. Ela participa de um expressivo grupo de alunas que fazem formação em psicanálise na Après Coup. “Quando uma pessoa preta tem um psicanalista negro, as identificações são diferentes, aquele profissional tem uma escuta mais atenta, uma escuta que entende o lugar de onde aquelas demandas raciais vêm.” A psicóloga afirma que já atendeu muitos pacientes negros que relatavam experiências de violência de análise por psicanalistas não negros por não conseguirem ouvir as questões raciais e a experiência do racismo.
“Enxergar um rosto semelhante ao meu é reconfortante, e facilitou o processo de análise”.
Situações semelhantes como a de Irimara aconteceram com a assistente social Daniela Ferrugem. Ela também faz análise com uma psicanalista negra há dois anos: “É possível falar sobre si sem precisar explicar o impacto da racialização”, disse sobre a experiência. Daniela também falou sobre o processo transformador nos cursos de psicanálise amefricana com a maioria negra: “É a minha primeira experiência em que me enxergo na maioria dos colegas. Ao mesmo tempo que nos apropriamos teoricamente, confrontamos a teoria, sempre questionando, propondo deslocamentos conceituais. Será que se a instituição não se abrisse a esta possibilidade e fizesse acontecer através das ações Afirmativas teríamos este processo de reposicionar conceitos? Quem historicamente esteve fora do circuito da Psicanálise chega apontando as ausências, as inconstâncias. Isso é ótimo para todos”, finalizou.
“Nossa experiência no mundo promove perspectivas importantes para quem se propõe a estudar a Psicanálise fora dos padrões monocromáticos do Ocidente.”
O psicanalista e professor Evandro Machado Luciano conheceu o trabalho da Après Coup pela própria análise pessoal. Depois de algum tempo como analisando, decidiu buscar a formação em Psicanálise junto ao seminário de especialização da instituição: “Um movimento interessante que foi importante para mim, ainda enquanto analisando, mas também que me possibilitou uma compreensão da psique e dos fenômenos que nos atravessam enquanto sujeitos”, declarou. Atualmente Evandro também faz parte do Departamento Clínico da Après Coup, e participa dos seminários de formação em psicanálise. O grupo do qual Evandro faz parte tem se empenhado em debater e construir uma psicanálise amefricana e amefricanizada. “Acredito na força do grupo, justamente por não se fechar em uma relação aluno/mestra, mas por se incomodar com certas problemáticas, por duvidar da aplicabilidade de um conceito ocidental aqui e por ser propor a fazer ato dentro de uma área solidamente eurocentrada”.
“Me sinto mais livre para apresentar a minha vida e meus problemas.”
A professora de filosofia Luiza Maria Regis da Conceição também faz parte dos cursos de formação em psicanálise. “O que permeia a sociedade para as pessoas negras é muito semelhante ao que ao psicanalista negro vai passar. Percebo que, como mulher negra, ao falar com minha psicanalista negra, a palavra que eu digo é mais ouvida e entendida. O outro é muito mais próximo a você, há mais ligação e você se sente segura”. Luiza também destaca que questões como a violência obstétrica que sofreu são situações muito delicadas e necessárias que sejam ouvidas e analisadas por quem tem uma formação mais identificada com a mesma realidade: “A população negra tem questões que estão baseadas na historia, cultura, política e que às vezes você pensa que sofre sozinha, mas está dentro de um contexto. Nesse sentido e em outros, a psicanálise amefricana faz toda a diferença”, finalizou.
Encontros e cursos de Psicanálise Amefricana da Après Coup
Ao longo da sua trajetória, a instituição tem organizado encontros e cursos com a temática da psicanálise amefricana e tem oferecido um espaço de transmissão e troca para a construção coletiva de uma psicanálise que elabore perguntas concernentes à condição histórico-social das Américas.
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