Orgulho e Resistência: A 23ª Parada da Diversidade celebra Ancestralidade LGBTQIA+
O dano moral de um caso imoral no mundo do trabalho
Imagine que você, funcionário ou funcionária, desceu para passear com os cachorros da sua patroa deixando seu filho aos cuidados dela. Agora pense que a patroa, aborrecida com o menino que não parava de chamar por você, colocou a criança no elevador e, apressada, apertou um andar mais alto, afinal, precisava voltar para fazer as unhas. Finalmente pense nesta criança despencando 35 metros até o chão e morrendo por conta disso.
Este foi o resumo do enredo macabro e sabido por todos envolvendo o menino Miguel Otavio Santana da Silva, com cinco anos no ano de sua morte (2020); sua mãe, Mirtes Renata; e a patroa dela, Sari Cortes Real. A novidade foi a suspensão pelo Superior Tribunal de Justiça da ação que condenou Sari e seu marido, o prefeito da cidade pernambucana de Tamandaré Sérgio Hacker, a pagarem um milhão de reais por danos morais à família do menino.
O juiz Marco Aurélio Bellizze não entendeu que havia relação entre o pedido de Mirtes e o seu contrato de trabalho. Está no texto divulgado no site do STJ nesta quarta (18): “um dos objetos da reclamação trabalhista, especificamente sobre a indenização por danos morais decorrente da morte da criança, não está relacionado ao contrato de trabalho em si, ainda que, no momento do fato danoso, existisse uma relação trabalhista entre as partes, de maneira que, a princípio, a competência seria da Justiça comum, motivo pelo qual se mostra prudente o sobrestamento da reclamação trabalhista”.
Paralelamente à ação na Justiça do Trabalho, foi ajuizada outra na Justiça comum estadual. A defesa de Sari alega conflito, ou seja, que as duas ações, trabalhista e cível, têm pedidos de indenização por danos morais decorrentes do mesmo fato — o falecimento da criança. Os juristas debaterão se o processo e a sentença procedem ou não, mas o que é importante aqui, para os leigos e leigas dos meandros do judiciário, é a legítima sensação de que no Brasil o trabalho é uma das moradas do inferno.
Todo mundo precisa ganhar o pão de cada dia, mas as relações são majoritariamente exploratórias, humilhantes, cheias de ranço escravista e mantenedoras não apenas de privilégios, mas de castas de soberbos intocáveis. Uma “elite teflon”, pois não parece haver condenação que grude neste grupo.
A certeza da impunidade; a não consideração de vidas que tratam como sub-humanas e a visão de um pequeno de cinco anos não como criança, mas como alguém adulto e capaz de ter noção do perigo, impulsiona o dedo a apertar o décimo andar tomando cuidado para não borrar o esmalte molhado. Este salvo-conduto que parece conferir o direito de pairar sobre o bem e o mal também aduba toda espécie de terror para quem se vê na necessidade de trabalhar para a “elite teflon”.
A ex-patroa de Mirtes chegou a ser presa em flagrante por homicídio culposo, mas foi solta após pagar fiança. O Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), em 2022, confirmou a condenação de Sari Cortes Real por abandono de incapaz com resultado morte, e fixou a pena em sete anos, em regime inicial fechado.
A política no pano de fundo do corpo que cai
A trama da família do marido de Sari na política é a mesma verificada em milhares de municípios brasileiros e inspiradora de novelas com personagens baseados em fatos e figuras reais. Os Hackers são os maiores proprietários de terras rurais e urbanas na soma de três municípios pernambucanos (Tamandaré, Rio Formoso e Sirinhaém) e também possui empresas do ramo automotivo (venda, revenda e compra de automóveis) no Recife e em São Paulo (SP). Eles se alternam no poder há décadas em cidades da belíssima região do sul pernambucano.
No olho do furacão do caso Miguel, Sérgio Hacker não conseguiu se reeleger prefeito em 2020, perdendo para Isaias Honorato, conhecido como “Carrapicho”. Nesta tormenta o Ministério Público de Pernambuco ainda investigou que Sérgio pagou as empregadas de sua casa, a mãe e a avó de Miguel, com recursos públicos, o que lhe rendeu um processo de improbidade administrativa. O MPPE disse: “durante os anos de 2017 a 2020, o prefeito utilizou, para serviços particulares na sua residência, o trabalho de servidoras públicas, recusando-se a pagar pelas empregadas e repassando o ônus ao contribuinte”.
Este ano outro membro da família, o ex-prefeito de 2008 a 2016 Hildo Hacker, tenta recuperar à cadeira de prefeito. Talvez consiga.
Muitos processos, muitas acusações e defesas. Tudo em aberto, a vida segue no trabalho diário e Miguel continua caindo.
E Miguel segue morrendo.
Fonte: ICL Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista
Imagem: Internet ICL
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