Enquanto diversos municípios brasileiros ainda lutam para estruturar instâncias de participação nas políticas de igualdade racial, Pelotas se destaca por manter, desde 1993, um conselho ativo dedicado à temática. A existência contínua do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra é apontada como um diferencial estratégico pelo secretário Julio Domingues, à frente da recém-criada Secretaria de Igualdade Racial do município. Essa estrutura histórica, segundo ele, foi fundamental para que Pelotas solicitasse a adesão ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR).

Durante entrevista ao programa Contraponto, da RádioCom Pelotas, nesta quarta-feira (9), Domingues detalhou como a atuação do conselho contribuiu para a formalização do pedido de adesão ao SINAPIR, sistema que poderá garantir acesso prioritário a programas, verbas e ações federais de enfrentamento ao racismo e promoção da equidade. “Temos um conselho ativo desde 1993 — isso nos diferencia de muitos municípios”, afirmou.

O que é o SINAPIR e por que Pelotas quer aderir

Regulamentado em 2013, o SINAPIR é um instrumento do governo federal que busca articular e fortalecer políticas de promoção da igualdade racial entre União, estados e municípios. De acordo com Julio Domingues, o sistema oferece acesso prioritário a recursos, formações e editais, com foco no combate ao racismo e na implementação de medidas afirmativas.

Para aderir ao sistema, os municípios devem cumprir uma série de exigências: possuir um órgão voltado às questões étnico-raciais, ter um conselho ativo de igualdade racial e apresentar um relatório com as ações já desenvolvidas na área. "Cumprimos todos os critérios e apresentamos projetos em andamento, como as campanhas educativas em escolas e o trabalho de acolhimento a vítimas de racismo", afirmou o secretário.

Segundo ele, a adesão à modalidade básica do SINAPIR é o primeiro passo. Futuramente, a meta é atingir o nível pleno, que exige um Plano Municipal de Igualdade Racial. "Esse é um objetivo a médio e longo prazo, que deve ser construído de forma coletiva, com a participação dos movimentos sociais, do legislativo e da população", completou Domingues.

Potenciais ganhos para o município

A inclusão de Pelotas no SINAPIR abrirá portas para uma série de programas e repasses orçamentários do Ministério da Igualdade Racial. Domingues destacou iniciativas como o projeto Juventude Viva, que tem foco em juventude negra e só pode ser acessado por municípios integrantes do sistema. Também estão previstas capacitações para servidores públicos, ações de letramento racial e parcerias com outras pastas federais.

"A adesão ao SINAPIR nos posiciona de forma estratégica para acessar recursos e disputar editais que, sem isso, não poderíamos sequer nos inscrever", explicou o secretário. Ele também ressaltou a relevância da parceria com a Secretaria Municipal de Educação, especialmente na elaboração de projetos educativos e na difusão de informações sobre como denunciar casos de racismo.

Com a adesão, a cidade passa a ter prioridade na seleção de projetos, o que pode significar um reforço financeiro importante para um município que enfrenta dificuldades orçamentárias. Domingues reforça: "Não há como desenvolver políticas eficazes de igualdade racial sem financiamento e apoio institucional".

A importância do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Pelotas

Uma das estruturas fundamentais para a solicitação da adesão ao SINAPIR foi o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Pelotas. Criado em 1993, o órgão segue ativo até hoje e teve papel decisivo ao validar, em ata, o pedido da Secretaria de Igualdade Racial.

Domingues destacou que essa continuidade não é comum em muitos municípios do estado. “Falei com colegas do Ministério da Igualdade Racial e de outras cidades, e muitos ficaram surpresos — positivamente — ao saber que Pelotas tem um conselho em funcionamento há mais de 30 anos”, comentou. Essa atuação, segundo ele, mostra que houve pressão social consistente ao longo do tempo, vinda principalmente do movimento negro local.

A existência do conselho também tem permitido maior articulação com outras secretarias e fortalecimento da participação cidadã na elaboração de políticas. “Independente de quem esteja no governo, precisamos garantir estruturas que assegurem continuidade nas ações. O conselho é uma dessas garantias”, reforçou.

Projetos em andamento

Entre as iniciativas destacadas no processo de adesão estão projetos de formação antirracista nas escolas, panfletagens informativas e acolhimento a vítimas de racismo com orientação jurídica. A Secretaria também tem promovido encontros com instituições como a Polícia Civil e o cartório de crimes de ódio para aprimorar os fluxos de atendimento.

Domingues explicou que o protocolo de atendimento às vítimas está sendo construído para oferecer um acompanhamento mais completo. "Hoje, muitas pessoas não sabem como agir quando são vítimas de racismo. A ideia é que a secretaria ofereça suporte desde o primeiro atendimento até o encaminhamento jurídico e psicológico, com parcerias futuras."

O plano é que o município também organize sua própria Conferência Municipal de Igualdade Racial, etapa necessária para participar da conferência estadual e, posteriormente, da nacional. "A conferência municipal pode ser o ponto de partida para construirmos o Plano Municipal de Igualdade Racial, que será um instrumento fundamental para alcançar a adesão plena ao SINAPIR", concluiu o secretário.

Como denunciar: o protocolo de atendimento a vítimas de racismo

Um dos focos centrais da Secretaria de Igualdade Racial de Pelotas tem sido criar e divulgar um protocolo claro para que vítimas e testemunhas de racismo saibam como agir. Segundo Domingues, o desconhecimento sobre os caminhos legais é um dos fatores que contribuem para a subnotificação dos casos. “Temos muitos relatos nas redes sociais, mas poucos registros formais — e sem dados, não há como exigir políticas públicas mais robustas”, alertou.

O primeiro passo orientado pelo secretário é acionar o 190, quando o caso estiver ocorrendo em flagrante. Caso isso não seja possível, é fundamental reunir provas — como vídeos, fotos ou testemunhos — e registrar a ocorrência na Delegacia da Mulher (R. Barros Cassal, 516 - Areal), onde funciona o cartório responsável por crimes de ódio. A denúncia também pode ser feita de forma online, embora o atendimento presencial seja recomendado para garantir mais detalhes.

A secretaria tem atuado diretamente na produção e distribuição de materiais informativos, além de prestar atendimento presencial e remoto. Também está em andamento a construção de um protocolo mais completo, que inclua acompanhamento jurídico e psicológico. “Nosso objetivo é que a vítima não precise reviver a violência sozinha em cada etapa do processo”, explicou Domingues. A ideia é consolidar, a médio prazo, uma política pública contínua de assistência integral às vítimas de racismo.

Conferência Municipal de Igualdade Racial e os primeiros passos para a construção do Plano Municipal de Igualdade Racial

A elaboração do Plano Municipal de Igualdade Racial está entre as metas estratégicas da nova secretaria, mas, segundo Domingues, exige tempo e diálogo. Ele ressalta que o plano não deve ser feito de forma unilateral pela gestão municipal. “Não se constrói algo assim de cima para baixo. É preciso conversar com as várias instituições do município, com os movimentos sociais, com o legislativo”, afirmou.

Uma das etapas previstas para iniciar essa construção será a realização da Conferência Municipal de Igualdade Racial, ainda sem data definida, mas prevista para ocorrer após o lançamento de edital pelo governo estadual. A conferência municipal será condição obrigatória para que Pelotas participe da etapa estadual e, posteriormente, da Conferência Nacional promovida pelo Ministério da Igualdade Racial.

Domingues acredita que esse espaço coletivo pode ser o momento inicial de discussão do plano. “Posso propor, mas a conferência é soberana. A participação popular tem que ser o centro desse processo”, afirmou. Ele destaca ainda que a construção do plano deve ser feita com cautela e escuta, considerando as demandas históricas da população negra pelotense e a necessidade de políticas públicas duradouras.

Avaliação sobre histórico e desafios da política racial em Pelotas

Questionado sobre o histórico da cidade em relação à igualdade racial, Domingues reconheceu que houve avanços, mas que muitos deles ocorreram por pressão do movimento negro. "Tivemos legislações e iniciativas, mas a maioria delas foi impulsionada por militantes e ativistas sociais. Faltou continuidade e estrutura institucional para que essas políticas fossem efetivas."

Ele mencionou também a criação recente de comissões e programas de incentivo ao empreendedorismo negro e à Marcha da Mestra Griô Sirley Amaro, e reconheceu que muitos desses avanços ocorreram graças à luta de figuras locais. "A secretaria surge com o desafio de estruturar essas iniciativas e garantir que elas se tornem políticas de Estado."

Apesar disso, Domingues destacou que a Secretaria de Igualdade Racial, criada em janeiro de 2025, surge com o desafio de estruturar uma política pública ampla e duradoura. "Precisamos de recursos, planejamento e compromisso para dar conta da demanda histórica que existe em Pelotas."

A Prefeitura de Pelotas aguarda a resposta do Ministério da Igualdade Racial sobre a adesão ao SINAPIR até o início de maio. Caso aceita, a cidade poderá acessar programas federais de promoção da igualdade racial, incluindo formações, editais de fomento e repasses financeiros. A Secretaria de Igualdade Racial segue realizando atendimentos e orientações a vítimas de racismo presencialmente e pelo email smir@pelotas.rs.gov.br. Projetos educativos em parceria com escolas também estão em andamento.

*Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.