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Cá na Terra isso tem que se acabar (por Leonardo Melgarejo)
Esta semana deve nos ajudar a abrir os olhos.
Já quase não sobram árvores para dar sombra nos campos do Sul. Também estão minguando as florestas que produzem os rios voadores que equilibram o metabolismo ecossistêmico de nossos biomas. A nova variante da covid avança com tudo, o Carnaval vem aí, e o presidente acaba de voltar das férias. O que será que ele fará, pra que tudo isso piore?
Vejam que nesta semana em Uruguaiana a temperatura alcançou os 44 graus centígrados, ao ar livre. No Alegrete, onde a soja come os campos, foi pior. Ali os termômetros marcaram 48º centígrados.
Imagino que pela campanha gaúcha não se escute um pio. Afinal este calor é coisa para acabar com qualquer canto. Imagino até possíveis mudanças de letra naquele hino... com o mormaço abrindo espaço para versos como "por aqui o sol da tarde, mais do que arder como brasa, tá de jeito pra fritada, de ovo de ema ou até de lambari, nas pedras do Inhanduí”.
Tá certo, além de refinar a fala, e até pra não comprometer os fundamentos da poesia, seria preciso negociar galpão a galpão, argumentando pela autenticidade com que o Nico Fagundes retratou aqueles campos, que hoje passam por mutação.
Como inserir num hino o fato de que o mar verde do pampa, já está chegando na cor do sertão de Glauber Rocha? Mais um ano de seca. E neste verão, recém começado, 200 cidades gaúchas já declararam estado de emergência, pela seca. No início eram cerca de 5 mil famílias rurais, sem acesso a água, e pelo menos 140 mil sob ameaça de uma crise que vai se estender por anos. Agora, as quebras na produção, que - dizem - já superam os 70% na soja, 65% no milho e 60% no feijão, desmancharam no ar tudo que seria resolvido à base de dinheiro, em 2022, com pelo menos 9 milhões de toneladas de grãos perdidos. Os prejuízos estimados já rondam os R$ 30 bilhões.
Mesmo que se concentrem nos graúdos, aqueles que podem vender casas na praia e camionetes enquanto negociam rolagem de dividas, os dramas transbordarão sobre a peonada, o comércio, os prestadores de serviço e até sobre a boiada e as angulistas sem acesso à água. A saúde econômica de todos os rincões, cooperativas e bolichos e bicharadas, que já estava comprometida, agora vai para a as filas da UTI, esperando apoio do governo central. E vai ser difícil porque o drama desta seca nem é só nosso. Ele se estende aos demais estados do Sul. Em SC se falam em perdas de 50%, no Paraná, de 30%.
E ao mesmo tempo, no Leste do pais, 549 cidades, a maioria em Minas Gerais e na Bahia, se declaram em estado de emergência, pelo excesso de chuvas. A água que nos falta no RS, ficou por ali. Com a La Niña os rios aéreos, já esgualepados e minguantes pelas queimadas, se derramaram por inteiro no meio do caminho. Foi demais para os baianos, e muito além da conta, para os mineiros.
Ali naquelas regiões as perdas de lavouras, ainda que enormes, já são o de menos. E estão sendo meio que ignoradas, com a contabilização das mortes, dos rompimentos de barragens e com o desafio das tarefas voltadas à desocupação de cidades inteiras - para evitar o pior - por conta do dilúvio. Eles também precisam do governo central, e como o presidente voltou das férias, dá certo medo de pensar no que ele fará.
Porque para piorar, e com a covid avançando com sua nova variante, quando especialistas afirmam que em breve o Brasil poderá somar um milhão de pessoas infectadas, por dia, o que colapsará de vez o sistema de saúde, "o pior ser humano do mundo", já afirmou, com todas as letras, que aqui a ômicron “é bem vinda”.
A boiada, que crê nas palavras daquele presidente da República, no tocante a isso daí pode até ficar tranquila, afinal, como ele bem observou, “a saúde no Brasil sempre foi um caos. Por que agora essa preocupação enorme com a covid?”
Tudo indica que para ele, relaxado que está em seu retorno de férias, o melhor é deixar rolar.
Deixar que a pandemia avance por aqui. E deixar que recordes de incêndios continuem destruindo a Amazônia. E que se danem os afetados. Afinal, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, um manda e os outros obedecem.
Ao que parece, na lógica “daquele de quem não se fala o nome”, não também haveria motivo para o estabelecimento de conexões entre as mortes de qualquer origem, por falta de atendimento hospitalar e a redução no numero de profissionais de saúde, infectados, ou de leitos em UTIs, superlotadas, por covid.
Para ele, que se declara especialista em matar, devem mesmo estar sobrando, em vida, pessoas do tipo que insiste em fazer associações de tragédias nacionais com as ações e omissões de seu governo.
Afinal, o que a chuva, a seca, a fome, a miséria, o medo e a volta do complexo de vira-latas teriam a ver com o fato de estarmos viajando num trem desgovernado, rumo à pinguela caída? Passageiros bocós, o coringa como maquinista doido, foguistas armados e bilheteiros incompetentes, todos entretidos em desviar a grana das passagens, enquanto o tempo escorre, não pode dar certo.
Precisamos acordar deste pesadelo, e em 2022 recomeçar, por nossa conta, a construção da moral nacional, confiantes de que o Divino, sempre atento, já deve estar cansando de esperar que a gente, aqui na Terra, dê um jeitinho pra viver.
E se ELE, vendo que o inominável desdenha dos mandamentos, debocha do desequilíbrio ecossistêmico e das viroses pandêmicas, nos pegar nojo e resolver mandar pra cá aquele anjo da flamejante?
Ave Gilberto Gil com sua louvação!
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko
Leonardo Melgarejo
Engenheiro Agronômo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1976), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000). Foi representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio (2008-2014) e presidente da AGAPAN (2015-2017). Faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (2018/2020 e 2020-2022) e é colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, do Movimento Ciência Cidadã e da UCSNAL.
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